A linguagem nas perdas auditivas por otites médias

Duas das perguntas que um Terapeuta da Fala faz aos pais quando se inicia um processo de avaliação da linguagem são: existe um historial clínico de otites? Foi realizado algum despiste auditivo (para além do rastreio neonatal feito habitualmente na maternidade)?


Vamos entender o porquê destas perguntas.


Para começar… o que são Otites médias?

A otite média com efusão (OME), também chamada de otite media serosa ou otite media com derrame, corresponde a uma inflamação (de caráter crónico) da mucosa do ouvido médio associada à acumulação de líquido, que pode ocorrer motivada por diferentes condições clínicas. Na maior parte das vezes, esta inflamação não envolve febre ou dor aguda, pelo que, pode acontecer que muitos pais não identificam a presença desta inflamação.


A acumulação de líquido no ouvido médio tem impacto na função mecânica do ouvido e na condução da onda sonora, levando a perdas auditivas (perdas auditivas por condução).


Cerca de 80% das crianças têm pelo menos um episódio de OME até ao ano de idade. Das crianças afetadas, aproximadamente 55% têm perda auditiva leve nas frequências da fala.


As otites médias tem uma particularidade, apresentam um caráter flutuante, o que significa que se vão alternando períodos de perda auditiva com períodos de audição normal - o que compromete um diagnóstico que se quer o mais precoce possível. 


Estas variações proporcionam uma estimulação sonora inconsistente do sistema nervoso auditivo central, podendo ter impacto da percepção dos sons da fala. Acresce ainda que, o fluido na orelha média pode provocar ruído junto à cóclea, distorcendo a percepção auditiva dos sons.


É por este caráter flutuante, sem dor e sem febre que trazemos reflexão sobre este tema. Porque estas alterações são “silenciosas”, mas muito importantes. Vejamos…

A linguagem nas perdas auditivas por otites médias

As otites médias são alterações “silenciosas”, mas muito importantes.

Qual o impacto da presença de otites médias na linguagem?


São inúmeros os estudos que mostram a relação entre a presença de otites médias e alterações de linguagem ou fala, mas de que forma é que esta relação se dá?

A privação auditiva inconsistente ou flutuante, gerada pela condição de otites médias, possui um papel relevante na linguagem, especialmente quando acontecem no primeiro ano de vida (e até aos 3 anos), uma vez que, muito antes dos primeiros balbucios e das primeiras palavras, a criança inicia o processo de descodificação e aquisição das propriedades da sua língua, utilizando a via auditiva como via preferencial. 


Os bebés recebem informação auditiva da fala dos adultos iniciando uma análise de propriedades fonológicas (prosódicas, silábicas, fonémicas), de forma a iniciar a construção da sua língua. 


Baptista (2015), num estudo longitudinal, verificou que o período de instalação da otite é muito relevante para o desenvolvimento  e impacto na linguagem (embora com impacto distinto em diferentes domínios da linguagem - nos seus resultados o conhecimento lexical não se encontrava abaixo do esperado, mesmo no grupo com otites precoces, o que nos mostra que esta medida não é uma boa medida para avaliar estas crianças por não ser distintiva).


Assim, o início precoce dos episódios de otite tem um impacto negativo sobre o desenvolvimento linguístico em geral, e fonológico, em particular. Não se observando um impacto tão importante quando o início das otites ocorre depois dos 3 anos - Nestes casos, as crianças comportam-se igual ao grupo de controlo, portanto sem alterações de qualquer tipo.


Os resultados deste trabalho mostram que as crianças com historial precoce de otite média apresentam características compatíveis com um atraso fonológico, demonstrando dificuldades com estruturas silábicas complexas e, especialmente, com o contraste [±voz] na classe das fricativas. O desempenho face às laterais [l/ɫ], especialmente em Coda, mostra também o impacto desta condição na produção de fala.


O impacto parece ser reduzido no que respeita à quantidade de palavras mas, mesmo após  um ano de miringotomia com colocação de TVTT (colocação dos “tubinhos”) observam-se dificuldades morfológicas, de memória auditiva e metalinguagem (mais especificamente a consciência fonológica). Esta condição pode ainda ter influência no processamento auditivo central.


Assim, um impedimento da qualidade ou quantidade da informação auditiva poderá ter um impacto na aquisição da linguagem e/ou da fala. Esta perda de informação tem um impacto mais significativo quando acontece nos primeiros anos de vida (já que este corresponde a um período crítico de aquisição da linguagem), pelo que é crucial a identificação atempada da presença destas otites “silenciosas".


A que podemos/devemos estar atentos? (estes são só alguns dos sinais que podem ser encontrados nas crianças com otite média e que não têm febre ou dor)

. A criança está recorrentemente com o nariz entupido?

. A criança respira preferencialmente pela boca?

. A criança por vezes não entende à primeira a palavra que lhe é dita, podendo até repetir uma sequência semelhante?

. A criança parece ter dificuldades auditivas num momento ou altura do ano e noutros momentos não (pode parecer meio distraída)?


Estes podem ser alguns sinais relevantes!



Um agradecimento muito especial à minha querida colega Ana Catarina Baptista.

Podes consultar o trabalho desenvolvido no âmbito da sua tese de doutoramento em:https://repositorio.ul.pt/hand...


Frederica (2016); Balbani, Montovani (2003); Joanne E. Roberts; Richard M. Rosenfeld, and Susan Zeisel (2004); Bluestone & Klein (2004); Baptista (2015)